A UNIDADE DO AMOR NA CRIAÇÃO E NA HISTÓRIA DA SALVAÇÃO (Parte I)
Em sua primeira Encíclica, escrita no início de seu pontificado no ano de 2005, o então sucessor de Pedro, Bento XVI, nos traz uma importante reflexão sobre o amor de Deus, que é a essência de nossa caminhada cristã.
Iniciando essa reflexão, o Sumo Pontífice cita o versículo que se encontra no evangelho de João, capitulo 6:"Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único para que todo o que n'Ele crer (...) tenha a vida eterna"(Jo 3,16). Segundo ele, o que antes era rezado constantemente pelos israelitas apenas como um mandamento, "Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração,com toda a tua alma e com todas as tuas forças"(Deut 6, 4-5), agora em Jesus e por Ele se personifica no próprio amor que vem ao mundo para salvar a humanidade.
Neste sentido, Bento XVI vem nos apresentar nesta primeira parte de sua encíclica a verdadeira essência do amor divino, dom gratuito de Deus, para que possamos também nós, nos esforçarmos em corresponder ao seu amor.
Iniciando sua reflexão, destaca-se a utilização da palavra amor nos dias atuais, que é utilizada de diversas maneiras mas que nem sempre denota o mesmo significado. Neste aspecto surge a dúvida: Será que todas as formas de amor são a mesma, ou será que nós estamos utilizando desta palavra para descrever realidades diferentes? O termo EROS, utilizado apenas duas vezes no antigo testamento Grego, refere-se mais precisamente ao amor entre homem e mulher, PHILIA é utilizado para designar o amor entre amigos e ÁGAPE, o amor incondicional. Este ultimo foi melhor favorecido por representar algo singular em relação aos demais.
No entanto, mais precisamente durante o iluminismo, foi-se gerando um pensamento radicalista de que o cristianismo teria destruído o "EROS". No período que antecede ao cristianismo, os gregos e diversas outras culturas, tinham uma visão distorcida do EROS, como algo que retirava o homem de sua humanidade e fazia com que este, em nome de uma certa loucura divina pudesse ter uma experiência sobrenatural com o Divino. Destes surgiram formas de religião que atentavam gravemente a fé no único Deus, divinizando o EROS e pervertendo seu real significado, já que nos cultos buscava-se este êxtase espiritual através de prostitutas que serviam de instrumentos para este fim, que não eram deusas, sendo utilizadas apenas como objetos. Vemos claramente uma perversão da religiosidade, já naqueles tempos, que foi fortemente combatido pelo Antigo Testamento. Fica claro que o verdadeiro sentido do amor EROS, não é algo puramente instintivo, mas sim racional, que passa pela renuncia e purificação, para ser vivido em sua essência verdadeira, pois se vivido de forma desordenada não leva ao Divino e sim a queda, como afirma Bento XVI. O autor afirma ainda que a vivência plena do amor EROS é atingida quando corpo e alma estão fundidos em unidade, pois o homem que renega o espírito e busca apenas o que é carnal esta incompleto, assim como o que apenas considera o espírito e despreza a carne, pois segundo ele, nem espírito nem corpo amam sozinhos, é preciso essa unidade para que o EROS possa ser amadurecido plenamente. Sempre houve erroneamente o pensamento de que o cristianismo é contrário a corporeidade. Mas na verdade o erro está em exaltar o corpo, o que muitas vezes acaba como que degradando o seu real valor. Pois este passa a ser visto como um objeto, do qual muitas vezes e em especial nos dias de hoje, serve apenas para se tirar algum proveito.
O cristianismo enxerga no ser humano não somente o corpo, como puramente matéria, mas também o espírito, que juntos fazem com que se possa experimentar verdadeiramente o divino, desde que trilhemos esse caminho de renuncia e mortificação, para a purificação necessária. Para esta purificação, segundo o autor, é necessário que o amor vá amadurecendo até chegar ao seu mais alto nível:"o amor visa eternidade". Este está disposto ao sacrifício, a renuncia de si mesmo em função do outro. A exemplo de Jesus que morreu por amor a humanidade, onde ai se alcança a plenitude.
Vemos constantemente esta contraposição entre o amor EROS e ÁGAPE, sendo o primeiro como mundano e o segundo como divino, mas que estão sempre unidos. Se as relações humanas permanecem no EROS (fechando-se em função de si mesmos), de fato elas se destroem, mas se a medida que esse amor vai amadurecendo, este aproxima-se do ÁGAPE (doar-se ao outro) permanecendo nesta unidade, o amor é capaz de experimentar o seu verdadeiro sentido. Porém para dar amor é preciso primeiramente recebê-lo daquele que é a fonte do amor verdadeiro, Jesus Cristo,"cujo coração trespassado brota o amor de Deus", como afirma Bento XVI. Entende-se ainda que o amor é algo único, composto de duas realidades que se fundem, as quais estão presentes no ser humano, aceito por completo para que nessa busca constante do amor seja purificado.
Em um segundo aspecto, o então sucessor de Pedro, trata de questões relacionadas a fé bíblica, já que principalmente com a cultura grega havia ainda a confusão entre os vários deuses e o único Deus. Fica claro que só há um único Deus, capaz de criar todas as coisas e que ama o homem com amor singular. Este que elege Israel, e através deste, toda a humanidade. Que ama sem esperar nada em troca, capaz de perdoar, que tem pelo seu povo um amor apaixonado .
Partindo da criação do homem (Gn 2,23), entende-se que o EROS está de certa forma relacionado a união entre o homem e a mulher (matrimonio) que os torna um só para sempre, fazendo uma alusão ao relacionamento de Deus com seu povo. Tratando-se do amor encarnado de Deus, Jesus Cristo, o autor destaca ainda a importância de toda a escritura, pois o Deus de quem se fala no Antigo Testamento, assume agora forma humana no Novo Testamento e vem para revelar o amor em sua "forma mais radical", a morte de cruz. Nosso Senhor mostra-nos sua forma de amar através do Santo Evangelho, como os exemplos já citados nesta carta: "o pastor que vai atrás da ovelha perdida, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro do filho pródigo e o abraça, não se trata apenas de palavras, mas constituem a explicação do seu próprio ser e agir".
Neste amor, quis o Senhor perpetuar sua presença no meio de nós através da Sagrada Eucaristia. Tornando-se verdadeiro alimento, Ele desce até nós para nos elevar. O que antes era apenas estar na presença de Deus, torna-se agora verdadeira união com o próprio Cristo. É esta união com Deus e com todos os cristãos, pois esta comunhão nos retira de nos mesmos e nos impulsiona a viver o mandamento em sua plenitude, já que neste sacramento Deus nos ama, para que aprendamos d'Ele como amar nossos irmãos.
Recordando a parábola do bom samaritano, o autor destaca a missão da Igreja de sempre enxergar a necessidade do "próximo", que antes referia-se ao estrangeiro que passava a fazer parte de uma determinada comunidade, mas que agora se estende a todo aquele que necessita de ajuda, sendo que cabe a cada cristão estar sempre disposto a ajudar. Compete a cada um de nós enxergar no irmão o próprio Cristo, que se encontra necessitado, desprezado e esquecido e assim cumpriremos com o mandamento do amor a Deus e aos irmãos.
Este duplo mandamento torna-se indivisível, assim como enfatizado nesta carta: "Se alguém disser: "Eu amo a Deus", mas odiar a seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama a seu irmão ao qual vê, como pode amar a Deus, que não vê?"(I Jo 4,20). Não quis o Senhor exigir este amor, mas Ele nos torna capazes de corresponde-lo. E para isso nos deixa o caminho do amor ao próximo, pois está tão diretamente ligado ao amor a Deus, que através deste dom encontramos no outro o próprio Deus a quem dificilmente conseguiríamos encontrar se não trilhássemos este caminho.
Ninguém jamais viu a Deus, porém Ele não foi completamente invisível a nós, pois por seu amor, encarnou-se em Jesus Cristo e nele pudemos contempla-lo. Deus se fez presente em toda a história da Igreja e continua a se fazer presente em cada momento de nossas vidas, buscando nos resgatar, nos conquistar, nos trazer de volta quando estamos perdidos e é através desse encontro que podemos nos sentir amados, o que também nos torna capazes de amar verdadeiramente. Por isso o amor a Deus não se torna uma exigência e sim uma resposta.
Bento XVI afirma ainda que "o amor não é apenas um sentimento", ainda que inicialmente seja sentido desta forma, até atingir sua verdadeira essência passa pela processo da purificação. Este é contínuo, e vai transformando o homem segundo Aquele que ele ama. Não só espiritualmente, mas em todas as áreas da vida, tornado a sua vontade cada vez mais semelhante a vontade de Deus.
É através dessa experiência que podemos nos tornar capazes de amar até mesmo quem não conhecemos, pois esta comunhão com o próprio Deus nos faz sentir como Ele e a partir disto,o mandamento já não é visto como uma exigência, mas a comunhão com a sua vontade nos faz compartilhar do querer de Deus. Quando estamos distantes d'Ele nem se quer enxergamos o irmão que sofre. Se ajudamos ao outro apenas para cumprir nossa obrigação, achando que estamos fazendo a vontade de Deus, nos enganamos. É necessário amar com o amor que o próprio Deus nos ama. Já que é desse amor que é derramado no íntimo dos nossos corações que nasce o desejo de compartilhar este dom com os irmãos.
FONTE:https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20051225_deus-caritas-est.html
AUTORA: IVANA MARÇAL BRASIL